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segunda-feira, 7 de dezembro de 1998

AS ABELHAS




/EM TÁBUA (meus 5 anos)/

AS ABELHAS




/A amizade tem destas…
E outras coisas com bolor.
Para não arrefecer o amor?
Umas santas picadelas. /




Perto da casa, havia um poço com água que eu tirava com muito cuidado, porque em baixo existia uma colmeia, e não podia haver descuidos.
Tantos dias, a confiança aumentava e já o fazia com a experiência repetida dos actos, quase de olhos fechados…
As abelhinhas já não estranhavam, habituadas às descidas do balde com água fresquinha e até aproveitavam para bebericarem nas subidas, aumentando o número delas à passagem da sua toca como que um aviso…

Aqueles aviõezinhos de amarelos tão belos, para baixo e para cima, em dias de sol prazenteiro numa azáfama quotidiana sem rebuliços, davam prazer ao meu coraçãozinho, como se fizessem parte do amor familiar e os tratasse como irmãozitos…

Enquanto as observava, ia apanhar amoras silvestres, passatempo favorito com que a quinta me presenteava, e comer tantas amoras pretas quantas pudesse, por serem suculentas e doces, e eu, um grande guloso… e uma abelha ou outra em sintonia copiava meus gestos na grande gulodice…
...

Um dia, correndo pela chácara, andava eu a brincar com uma borboleta e um gafanhoto há um bom bocado, quando o calor da tarde de Julho me fez sentir a sede que havia dentro de mim, beber aquela água fresquinha que estava no fundo do poço… mesmo ali.

Minha mãe, na sombra do primeiro andar da casa, ao lado da porta da garagem, lavava à mão a roupa num tanque de pedra e cimento.

Peguei no balde que estava atado a uma corda, pendurada numa trave em cima, no meio do poço, e como era costume, comecei lentamente a descer e ao chegar ao fundo dei um jeito, senti o peso, e com mil cuidados ao passar na zona da colmeia continuei a subir…

já tinha passado a zona de perigo e respirado bem fundo, quando eis senão, um moscardo enorme me poisou no nariz.
Acto contínuo num reflexo impensável, gritei, tentei com o instinto da mão direita sacudir o insecto e com êxito atingi também a colmeia.

Largando tudo, nem olhei… comecei a correr na direcção da minha mãe aos gritos com o enxame atrás de mim, que ao ver aquilo se fechou na garagem comigo.

Levámos algumas picadelas, mas nada que um pouco de azeite quente não ajudasse a minorar as dores, e o susto… o enxame ficara praticamente todo lá fora.

A vida continuou no seu ritmo normal, mas à tardinha vi com tristeza meu pai queimar a colmeia, apesar das dores que ainda sentia… parecia que o lume estava dentro de mim, e os inchaços na pele, resultado do fogo e o coração chamuscado, vazio, por nunca mais ver as minhas amarelinhas abelhinhas.







 






segunda-feira, 9 de novembro de 1998

CARNAVAL DE INVERNO





/EM TRANCOSO/


CARNAVAL DE INVERNO



 
O inverno daquele sítio era medonho e triste, como a casa onde vivia escura e velha tristemente vazia.

Tinha companhia de alguém que já ali não estava, e tinha a companhia de minha mãe que à lareira nos aquecia, assando espigas de milho cujos grãos quebradiços se derretiam na boca como pipocas… e saltavam batendo na porta.

Toda aquela terra tinha um ar sombrio, não sei se era do tempo que fazia, se das ruas com aquelas janelas vazias, todas elas com casas antigas e a pedra fria ladeada pelas calçadas…

Era um gelo que nos acompanhava no princípio da avenida até ao final do estradão, um silêncio mortal das almas inquietas imorredoiras, naquelas paredes de cimento e cal como rochas tumulares.

Todos os homens e aquelas mulheres vestidos de negro, pareciam fantasmas, falavam e não diziam nada ou estavam falando de negócios da feira a que estavam acostumados, e repetiam as mesmas coisas com gravações de preços e trocadilhos, parecia um ritual de gente antiga, de seres que não eram deste lugar e faziam parecer nada de nada… 

Um costume lúgubre do dia-a-dia cheio de pavor e melancolia.
E os gigantones com seus rostos cabeçudos festejando o carnaval, completavam o quadro daquelas ruas ao som dos tambores, não conseguindo disfarçar o tom fúnebre com saltos e gaitadas de arrepiar os meus interiores…

Um batimento de almas despidas bailando na praça da tristeza com a sensação de impotência, um sentido que a vida não possui sentimento nem a vida um sentido, embora imitassem o contentamento no sentir.

O inverno daquele sítio era medonho e triste… como o tempo que fazia não existe, não tinha tempo nem moradia, era uma invenção da chuva em neve, vácuo gelado e vazio num lugar sem beleza nem conforto, velho e podre decadente num cheiro a mofo de humidade e ar viciado, odor de algo antigo e estragado, insuportável e rançoso.

Nunca tinha sentido tanta tristeza, tanto frio, tanto desgosto… uma ausência de alegria, prazer ou gosto.
Nunca tão longe me senti tão perto do inverno daquele sítio medonho e triste inferno… nunca tinha sentido tanto frio, sonolência, fraca existência da vida, simples vazio.













segunda-feira, 12 de outubro de 1998

A VOZ






VILA NOVA DE POIARES

“A VOZ”

 



Era pequenino, morava ao pé da estrada e um dia comecei a caminhar… seguindo a chama duma voz...

“Uma voz de mel docente, mel de palavras sobre-humanas no templo do meu ouvidor-mor, complemento de partículas flamejantes numa forma ancestral incolor, asas bonitas mais brancas que o brilho de águas cristalinas, uma mensagem de luz na minha companhia.”

Não existiam temores, confiava no som daquele falar, conhecido por mim na vida de outras vidas.

Para onde iria não importava, meus pés pisavam o ar e as nuvens – quinas por onde seguiam meus passos, seguros protegidos, eu ia fascinado pela luz da voz na estrada, saltitando de árvore em árvore, ora de mão dada pelos sentidos invisíveis de alguém que sussurrava em pouca ventania, e me guiava com ternura, e eu sentia o mundo dentro de mim e não tinha medo de nada…

Eu caminhava longe do sítio onde morava, queria seguir o caminho daquela estrada, estrada fora no tempo… ir com aquele ser de asas branquérrimas, onde tudo era branco em ponto miudinho e a cor do mundo transparente que não quer ser visto por enquanto. 

Nisto, senti o soluçar de alguém cansado, abraçado a mim chorando:
- Onde vais filho, que venho aflita?
Para que lugar, em que direcção passas?
Sai tu, vem… porque não paras?
Sou tua mãe querida, volta para casa… e nunca mais sozinho, vais por essa estrada!

Ao colo de minha mãe, para trás olhava, disse adeus àquela luz, acenei… disse um dia que noutro dia voltava.
 Não estava só. 
Sentia que lá no alto daquelas nuvens, havia outras transições, outros cruzamentos e que alguém me amava vindo daquelas esquinas, lugarejo ignoto de existências passadas…